sexta-feira, 5 de agosto de 2016

A Natureza da História da Igreja

Philip Schaff*


A história tem dois lados, um divino e outro humano. Da parte de Deus, ela é a sua revelação na ordem do tempo (assim como a criação é a sua revelação na ordem do espaço) e o sucessivo desvendar de um plano de infinita sabedoria, justiça e misericórdia, visando sua glória e a eterna felicidade da humanidade. Da parte do homem, a história é a biografia da raça humana e o gradual desenvolvimento, tanto normal como anormal, de todas as suas forças físicas, intelectuais e morais até a consumação final no julgamento geral, com suas recompensas e castigos eternos. A idéia de história universal pressupõe a idéia cristã da unidade de Deus e da unidade e destino comum dos homens, e era desconhecida à antiga Grécia e Roma. Uma visão da história que negligencie ou desvalorize o fator divino parte do deísmo e corre consistentemente para o ateísmo; enquanto a visão oposta, que negligencia a livre agência do homem e sua responsabilidade moral e culpa, é essencialmente fatalista e panteísta.

Da agência humana podemos distinguir a satânica, que entra como uma terceira força na história da raça. Na tentação de Adão no Paraíso, na tentação de Cristo no deserto e em cada grande época, Satanás aparece como o antagonista de Deus, esforçando-se para derrotar o plano de redenção e o progresso do reino de Cristo, e usando homens fracos e ímpios para os seus esquemas, mas no final sempre é derrotado pela sabedoria superior de Deus.

A corrente central e o alvo último da história universal é O REINO DE DEUS ESTABELECIDO POR JESUS CRISTO. Esta é a maior e mais abrangente instituição do mundo, tão vasta quanto a humanidade e tão duradoura quanto a eternidade. Todas as outras instituições são feitas subservientes a ela, e é em seu interesse que o mundo todo é governado. Não é nenhuma reflexão posterior acerca de Deus, nenhuma emenda subsequente do plano da criação, mas é a eterna previsão, a idéia controladora, o princípio, o meio e o fim de todos os seus caminhos e obras. O primeiro Adão é um tipo do segundo Adão; a criação olha para a redenção como a solução dos seus problemas. A história secular, longe de controlar a história sagrada, é controlada por ela e deve, direta ou indiretamente, servir aos seus fins, e só pode ser plenamente compreendida na luz central da verdade cristã e do plano da salvação. O Pai, que dirige a história do mundo, “traz ao Filho”, que governa a história da igreja, e o Filho conduz de volta ao Pai, para que “Deus seja tudo em todos”. “Todas as coisas”, diz S. Paulo, “foram criadas por Cristo e para Cristo; e Ele é antes de todas as coisas, e nEle todas as coisas subsistem. E Ele é a cabeça do corpo, da Igreja; o qual é o princípio, o primogênito dentre os mortos, para que em todas as coisas Ele tenha a preeminência” (Cl 1:16-18). “O Evangelho”, diz John von Müller, sumariando o resultado final da sua longa vida de estudos em história, “é o cumprimento de todas as esperanças, a perfeição de toda a filosofia, o intérprete de todas as revoluções, a chave de todas as aparentes contradições dos mundos físico e moral; é vida – é imortalidade”.

A história da igreja é a origem e o progresso do reino do céu sobre a terra, para a glória de Deus e a salvação do mundo. Começa com a criação de Adão, e com a promessa daquele que esmagaria a serpente, o que abrandava a perda do paraíso de inocência pela esperança da redenção futura da maldição do pecado. Ela atravessa as revelações preparatórias sob os patriarcas, Moisés e os profetas, até o precursor imediato do Salvador, que apontou para os seus seguidores o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. Mas esta parte da sua trajetória era apenas uma introdução. Seu ponto de partida próprio é a encarnação da Palavra Eterna, que habitou entre nós e revelou a sua glória, glória como do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade; em seguida, o milagre do primeiro Pentecostes, quando a Igreja assumiu o seu lugar como instituição cristã, cheia do Espírito do Redentor glorificado e incumbida da conversão de todas as nações. Jesus Cristo, o Deus-Homem e Salvador do mundo, é o autor da nova criação, a alma e a cabeça da igreja, que é o seu corpo e a sua noiva. Em sua pessoa e obra encontra-se toda a plenitude da Divindade e da humanidade renovada, todo o plano da redenção, e a chave de toda a história desde a criação do homem à imagem de Deus até a ressurreição do corpo para a vida eterna.

Esta é a concepção objetiva da história da igreja.

No sentido subjetivo da palavra, considerada enquanto ciência e arte teológica, a história da igreja é a descrição fiel e natural da origem e progresso deste reino celestial. Ela visa reproduzir em pensamento e encarnar em linguagem o seu desenvolvimento exterior e interior até o tempo presente. É um comentário contínuo sobre as parábolas gêmeas do Senhor acerca do grão de mostarda e do fermento. Ela mostra a um só tempo como o Cristianismo se espalha pelo mundo e como ele penetra, transforma e santifica o indivíduo e todos os departamentos e instituições da vida social. Assim ela abarca não apenas a sorte exterior da Cristandade, mas especialmente sua experiência interior, sua vida religiosa, sua atividade mental e moral, seus conflitos com o mundo ímpio, suas tristezas e sofrimentos, suas alegrias e seus triunfos sobre o pecado e o erro. Ela registra os feitos daqueles heróis da fé “que venceram reinos, obraram a justiça, alcançaram promessas, fecharam as bocas dos leões, apagaram a violência do fogo, escaparam do fio da espada, da fraqueza tiraram força, tornaram-se valentes em luta, puseram em fuga exércitos estrangeiros”.

De Jesus Cristo, desde a sua manifestação na carne, uma ininterrupta corrente de luz e vida divina tem estado e ainda está jorrando, e continuará a jorrar, em volume cada vez maior, através do refugo da nossa raça caída; e tudo aquilo que é verdadeiramente grande e bom e santo nos anais da história da igreja é devido, em última análise, ao impulso do seu espírito. Ele é o pêndulo do progresso do mundo. Mas ele opera no mundo através de homens pecadores e falhos, os quais, embora como agentes autoconscientes e livres sejam responsáveis por todas as suas ações, ainda assim devem, voluntária ou involuntariamente, servir ao grande propósito de Deus. Assim como Cristo, nos dias de sua carne, foi abatido, zombado e crucificado, sua igreja também é assaltada e perseguida pelas forças das trevas. A história do Cristianismo inclui então uma história do Anticristo. Com uma infindável sucessão de obras do poder salvífico e manifestações do verdade e santidade divina, ela desvenda também uma terrível massa de corrupção e erro. A igreja militante deve, pela sua própria natureza, estar em perpétua guerra com o mundo, a carne e o diabo, tanto interior como exteriormente. Pois, assim como Judas se assentava entre os apóstolos, do mesmo modo “o homem do pecado” se assenta no templo de Deus; e, assim como um Pedro negou o Senhor, ainda que depois chorou amargamente e reconquistou o seu santo ofício, do mesmo modo muitos discípulos em todos os tempos o negam em palavra e em obras.

Mas, por outro lado, a história da igreja mostra que Deus sempre é mais forte do que Satanás, e que o seu reino de luz deixa envergonhado o reino das trevas. O Leão da tribo de Judá esmagou a cabeça da serpente. Com a crucificação de Cristo, sua ressurreição também é repetida sempre de novo na história da sua igreja na terra; e nunca houve um dia sem um testemunho da sua presença e poder ordenando todas as coisas segundo a sua santa vontade. Pois ele recebeu todo o poder no céu e na terra para o bem do seu povo, e desde o seu trono celestial ele governa inclusive seus inimigos. A palavra infalível da promessa, confirmada por experiência, assegura-nos que todas as corrupções, heresias e cismas devem, sob a orientação da sabedoria e amor divino, ser útil  à causa da verdade, santidade e paz; até que, no juízo final, Cristo fará dos seus inimigos o escabelo de seus pés, e governará incontroverso com o cetro da justiça e da paz, e a sua igreja entenderá a sua idéia e destino como “a plenitude daquele que cumpre tudo em todos”.

Assim a própria história, em sua forma atual, como um desenvolvimento mutável e difícil, dará lugar à perfeição, e o fluxo do tempo entrará em repouso no oceano da eternidade, mas este repouso será a forma mais elevada de vida e atividade em Deus e para Deus.



* Philip Schaff (1819-1893) foi um teólogo germano-americano e historiador da igreja (mais informações, em inglês, no site www.ccel.org/ccel/schaff).



Fonte: History of the Christian Church (versão completa no site www.ccel.org)

Tradução: Rodrigo Reis de Faria (04/08/16)

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