Philip Schaff*
A história tem dois lados, um divino e outro humano. Da parte de Deus, ela é a sua revelação na ordem do tempo (assim como a criação é a sua revelação na ordem do espaço) e o sucessivo desvendar de um plano de infinita sabedoria, justiça e misericórdia, visando sua glória e a eterna felicidade da humanidade. Da parte do homem, a história é a biografia da raça humana e o gradual desenvolvimento, tanto normal como anormal, de todas as suas forças físicas, intelectuais e morais até a consumação final no julgamento geral, com suas recompensas e castigos eternos. A idéia de história universal pressupõe a idéia cristã da unidade de Deus e da unidade e destino comum dos homens, e era desconhecida à antiga Grécia e Roma. Uma visão da história que negligencie ou desvalorize o fator divino parte do deísmo e corre consistentemente para o ateísmo; enquanto a visão oposta, que negligencia a livre agência do homem e sua responsabilidade moral e culpa, é essencialmente fatalista e panteísta.
Da agência humana podemos distinguir a satânica, que entra
como uma terceira força na história da raça. Na tentação de Adão no Paraíso, na
tentação de Cristo no deserto e em cada grande época, Satanás aparece como o
antagonista de Deus, esforçando-se para derrotar o plano de redenção e o
progresso do reino de Cristo, e usando homens fracos e ímpios para os seus
esquemas, mas no final sempre é derrotado pela sabedoria superior de Deus.
A corrente central e o alvo último da história universal é O
REINO DE DEUS ESTABELECIDO POR JESUS CRISTO. Esta é a maior e mais abrangente
instituição do mundo, tão vasta quanto a humanidade e tão duradoura quanto a
eternidade. Todas as outras instituições são feitas subservientes a ela, e é em
seu interesse que o mundo todo é governado. Não é nenhuma reflexão posterior
acerca de Deus, nenhuma emenda subsequente do plano da criação, mas é a eterna
previsão, a idéia controladora, o princípio, o meio e o fim de todos os seus
caminhos e obras. O primeiro Adão é um tipo do segundo Adão; a criação olha
para a redenção como a solução dos seus problemas. A história secular, longe de
controlar a história sagrada, é controlada por ela e deve, direta ou
indiretamente, servir aos seus fins, e só pode ser plenamente compreendida na
luz central da verdade cristã e do plano da salvação. O Pai, que dirige a
história do mundo, “traz ao Filho”, que governa a história da igreja, e o Filho
conduz de volta ao Pai, para que “Deus seja tudo em todos”. “Todas as coisas”,
diz S. Paulo, “foram criadas por Cristo e para Cristo; e Ele é antes de todas
as coisas, e nEle todas as coisas subsistem. E Ele é a cabeça do corpo, da
Igreja; o qual é o princípio, o primogênito dentre os mortos, para que em todas
as coisas Ele tenha a preeminência” (Cl 1:16-18). “O Evangelho”, diz John von
Müller, sumariando o resultado final da sua longa vida de estudos em história,
“é o cumprimento de todas as esperanças, a perfeição de toda a filosofia, o
intérprete de todas as revoluções, a chave de todas as aparentes contradições
dos mundos físico e moral; é vida – é imortalidade”.
A história da igreja é a origem e o progresso do reino do
céu sobre a terra, para a glória de Deus e a salvação do mundo. Começa com a
criação de Adão, e com a promessa daquele que esmagaria a serpente, o que
abrandava a perda do paraíso de inocência pela esperança da redenção futura da
maldição do pecado. Ela atravessa as revelações preparatórias sob os
patriarcas, Moisés e os profetas, até o precursor imediato do Salvador, que
apontou para os seus seguidores o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo.
Mas esta parte da sua trajetória era apenas uma introdução. Seu ponto de
partida próprio é a encarnação da Palavra Eterna, que habitou entre nós e
revelou a sua glória, glória como do unigênito do Pai, cheio de graça e de
verdade; em seguida, o milagre do primeiro Pentecostes, quando a Igreja assumiu
o seu lugar como instituição cristã, cheia do Espírito do Redentor glorificado
e incumbida da conversão de todas as nações. Jesus Cristo, o Deus-Homem e
Salvador do mundo, é o autor da nova criação, a alma e a cabeça da igreja, que
é o seu corpo e a sua noiva. Em sua pessoa e obra encontra-se toda a plenitude
da Divindade e da humanidade renovada, todo o plano da redenção, e a chave de
toda a história desde a criação do homem à imagem de Deus até a ressurreição do
corpo para a vida eterna.
Esta é a concepção objetiva da história da igreja.
No sentido subjetivo da palavra, considerada enquanto
ciência e arte teológica, a história da igreja é a descrição fiel e natural da
origem e progresso deste reino celestial. Ela visa reproduzir em pensamento e
encarnar em linguagem o seu desenvolvimento exterior e interior até o tempo
presente. É um comentário contínuo sobre as parábolas gêmeas do Senhor acerca
do grão de mostarda e do fermento. Ela mostra a um só tempo como o Cristianismo
se espalha pelo mundo e como ele penetra, transforma e santifica o indivíduo e
todos os departamentos e instituições da vida social. Assim ela abarca não
apenas a sorte exterior da Cristandade, mas especialmente sua experiência
interior, sua vida religiosa, sua atividade mental e moral, seus conflitos com
o mundo ímpio, suas tristezas e sofrimentos, suas alegrias e seus triunfos
sobre o pecado e o erro. Ela registra os feitos daqueles heróis da fé “que
venceram reinos, obraram a justiça, alcançaram promessas, fecharam as bocas dos
leões, apagaram a violência do fogo, escaparam do fio da espada, da fraqueza
tiraram força, tornaram-se valentes em luta, puseram em fuga exércitos
estrangeiros”.
De Jesus Cristo, desde a sua manifestação na carne, uma
ininterrupta corrente de luz e vida divina tem estado e ainda está jorrando, e
continuará a jorrar, em volume cada vez maior, através do refugo da nossa raça
caída; e tudo aquilo que é verdadeiramente grande e bom e santo nos anais da
história da igreja é devido, em última análise, ao impulso do seu espírito. Ele
é o pêndulo do progresso do mundo. Mas ele opera no mundo através de homens
pecadores e falhos, os quais, embora como agentes autoconscientes e livres
sejam responsáveis por todas as suas ações, ainda assim devem, voluntária ou
involuntariamente, servir ao grande propósito de Deus. Assim como Cristo, nos
dias de sua carne, foi abatido, zombado e crucificado, sua igreja também é
assaltada e perseguida pelas forças das trevas. A história do Cristianismo
inclui então uma história do Anticristo. Com uma infindável sucessão de obras
do poder salvífico e manifestações do verdade e santidade divina, ela desvenda
também uma terrível massa de corrupção e erro. A igreja militante deve, pela
sua própria natureza, estar em perpétua guerra com o mundo, a carne e o diabo,
tanto interior como exteriormente. Pois, assim como Judas se assentava entre os
apóstolos, do mesmo modo “o homem do pecado” se assenta no templo de Deus; e,
assim como um Pedro negou o Senhor, ainda que depois chorou amargamente e
reconquistou o seu santo ofício, do mesmo modo muitos discípulos em todos os
tempos o negam em palavra e em obras.
Mas, por outro lado, a história da igreja mostra que Deus
sempre é mais forte do que Satanás, e que o seu reino de luz deixa envergonhado
o reino das trevas. O Leão da tribo de Judá esmagou a cabeça da serpente. Com a
crucificação de Cristo, sua ressurreição também é repetida sempre de novo na
história da sua igreja na terra; e nunca houve um dia sem um testemunho da sua
presença e poder ordenando todas as coisas segundo a sua santa vontade. Pois
ele recebeu todo o poder no céu e na terra para o bem do seu povo, e desde o
seu trono celestial ele governa inclusive seus inimigos. A palavra infalível da
promessa, confirmada por experiência, assegura-nos que todas as corrupções,
heresias e cismas devem, sob a orientação da sabedoria e amor divino, ser útil à causa da verdade, santidade e paz; até que, no juízo final, Cristo fará dos
seus inimigos o escabelo de seus pés, e governará incontroverso com o cetro da
justiça e da paz, e a sua igreja entenderá a sua idéia e destino como “a
plenitude daquele que cumpre tudo em todos”.
Assim
a própria história, em sua forma atual, como um desenvolvimento mutável e difícil,
dará lugar à perfeição, e o fluxo do tempo entrará em repouso no oceano da
eternidade, mas este repouso será a forma mais elevada de vida e atividade em
Deus e para Deus.
* Philip Schaff (1819-1893) foi um teólogo germano-americano e historiador da igreja (mais informações, em inglês, no site www.ccel.org/ccel/schaff).
Tradução: Rodrigo Reis de Faria (04/08/16)